sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Conto da Rara Lucidez Reconquistada

Vagava sempre em mil pensamentos por segundo. Tudo era um disparate. Já era assim desde outros tempos. Desde que (não mais) se entendia como gente. Vivia em partes. Vivia em sua totalidade, como o caos. Estava fragmentado desde a cruel partida. Aqueles tenebrosos tempos áureos, quando havia mergulhado na luz, tão tentadora.

Aquela luz difusa sugava tudo o que podia. Os pensamentos já não eram seus, misturavam-se aos feixes pré-condicionados lançados pelas sutis garras da víbora. Não tinha mais domínio algum de si mesmo. A morbidez era a dona de seu corpo físico, e não havia sublimação capaz contra aquele reinado. O código esquizo era a lei que atestava e fixava sua incapacidade eterna, sumulada pelo supremo da arrogância dos homens. Não há mais domínio para você. Não há domínio aos domingos.

Tudo comandava um falso devir de ideias, sempre introjetadas sem permissão. Culpa dele mesmo por não ter carapaça. - Ó maldita e dolorosa invasão! - sempre pensava. Tudo se repetiria cotidianamente, pelo tempo que o infinito de uma vida prometia. Isso também estava na lei. Quem sabe mais, dizia a doutrina. - Amanhã é segunda - chegou a pensar uma vez.

Após mil anos e três vidas, em mais um destes dias, talvez um domingo, desses em que todos se perdem (ou percebem que estão perdidos), um momento de breve lucidez o tomou. Por alguns minutos percebeu que tinha corpo. Apalpou a si mesmo e sorriu.

Contemplou a si mesmo por um dia inteiro, horrorizado e encantado. Queria muito ver seu rosto. Céus, como ele queria ver o próprio rosto! Hoje tenho dó, só de imaginar a angústia da situação.

E de repente ele sabia. Tinha plena e absoluta certeza de seus pensamentos. Sabia que eles tinham uma origem, uma fonte. Aquela lucidez original o aconselhou a chamá-la de alma. Percebeu que sabia próclises. - Mas que besteira - pensou. Muito acima disso, como uma águia que atravessa dimensões, percebeu que era dono dos seus pensamentos. A luz difusa ainda lançava suas flechas e feixes de eterno caos infinito, mas ele não mais se deixava controlar. Não mais se rendia. Queria fim, queria limites desta vez. Queria se impor, exercer a posse tão cara de si mesmo.

Sabia exatamente o que fazer. Desligou a TV e saiu para caminhar. Espaireceu. Não mais pairava. Era uma posse pesada. E vontade. Muita vontade de algo. Queria se perder nesse desejo. Vontade era o seu deus agora, o seu centro, o seu tudo. Queria outro corpo para sentir, para possuir, para gemer e fazer gritar. O instinto revelava o seu valor, outrora tão condenado. Era o peso de um ferro. Era a força de um aço fincado, fundido em sua vida. A barra que fixava sua mente.

Sabia o signo, mas não queria nomes. Queria palavras, abraços e frases completas. Frases conexas. Firmes como o aço em seu ser revivo. Havia espírito e instinto, tão unos como improvável. Era vida plena. Um mar perante o copo por tanto vazio. Ondas abundantes e plenitude real de ser. Podia ser. Mas tinha prazo. Rejeição a nada podia lhe caber. Era a cláusula universal. O único caminho possível era exercer a Vida, sem cuidado, para sempre. Ou segundos de crivo, e tudo se perderia em mentiras. - É pegar ou largar - disse-lhe o universo, com um singelo sorriso em brisa fresca.


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